Nossa segunda postagem referente
ao ano do Patrimônio Cultural – cujos objetivos do blog é não apenas tratar
este ano como meramente comemorativo, mas também como momento importante para reflexões
dos pontos sensíveis destes patrimônios,
O objetivo primeiro de um Arquivo
Público Municipal é tratar da documentação oriunda do poder público Municipal,
com objetivo de salvaguardá-la e colocá-la a disposição do cidadão, para
assegurar a este seus direitos a cidadania, a informação, pesquisa e
preservação da memória de seu espaço e sua cultura. Para além do trato
puramente probatório, o arquivo também trabalha com a memória e com historia do
município, e nesse sentido, ter a oportunidade de anexar a seu conjunto acervos
de natureza particular, mas com valor social, enriquece substancialmente a
Instituição.
Em muitos casos, esse patrimônio
se encontra acumulado dentro das casas dos moradores, que, talvez por
desinformação privam a cidade de importantes páginas de sua história, que podem
ser contatadas através de fotografias, manuscritos, documentos iconográficos, podendo
ser perdidos por este desconhecimento.
O recolhimento ou recebimento de
doações de acervos familiares ainda são bem raros em Ouro Preto. Há
alguns anos, o Arquivo Público Municipal de Ouro Preto recebeu, por doação, um
importante acervo pessoal pertencente à Família Xavier da Veiga. Recebemos
também o acervo Tonico Zelador. Em 2017 foi a vez da coleção de jornais da
cidade do século XX, e em 2018 recebemos acervo digital do Senhor Agenor Alves,
composto por seus cadernos escolares das décadas de 1930-1940.
Abaixo escolhemos duas cartas do
fundo privado do Xavier da Veiga endereçadas ao “Bom Patrão” (José Pedro) por
seu empregado Horácio. Numa primeira análise, podemos perceber de alguma
maneira, como Horácio é impactado pelas mudanças em seu modo de vida, quando da
mudança da capital de Ouro Preto para a cidade de Minas, mais tarde denominada
Belo Horizonte. Esse documento foi redigido no momento de transição entre as
tradições do passado e a modernidade, que se apresentava na nova capital. Estes
documentos descrevem um pouco do cotidiano deste homem em um novo lugar.
Cartas para Xavier _ Um homem de arquivos e memórias;
Carta 1:
Minas, Sábado, 11 de outubro de 1896 5 horas
da tarde.
Recebi
hoje, já no serviço a vossa cartinha de 15 que muito me contentou por saber que
tudo ai vai regularmente.
Respondendo-a,
dou-vos a boa notícia que não irei amanhã, pois a minha velha não quer que eu
deixe São Sebastião e São Roque sem a minha continência amanhã em sua
procissão. E é como penso só temendo doença sobre a terra, devo prestar
homenagem ao santo que dela nos livra embora mais cara me fique a não ida.
Como
vereis pela data desta, hoje é sábado e Toninha já levou as flores de Estela. É
o dia de sua alegria este de hoje. Quando leva flores ao cemitério passa bem e
acha tudo bom. Deus lhe dê saúde para assim fazer por muitos anos. Nós queremos
bem, ao patrão é por causa das meninas. A vida delas é a nossa e não sabemos
porque!!...Parece que agente vive da vida dos outros.
Falo,
zango, e mostro valentia!...Sai o patrão com a família (e mesmo sem ela!!) tudo
está mudado – nos falta alguma cousa, ficamos no ar – tudo que nos rodeia é
falso. Ficamos sozinhos – entretanto tudo vai bem, nada nos falta – mas parece
que nos falta tudo. Será isso a saudade?... Dessa maneira, creio... Não irei a
São Gonçalo nunca e o Belo Horizonte é duvidoso.
Mandei
hoje, às 11hs do dia, pelo Ricardo Café, as 10$000 ou Dr. Jacob.
Anteontem
vos remeti 4 folhas impressas da Revista e ontem imprimi mais uma, que não
mandei por ser pouco. Creio que o nosso chefe vos tem
mandado provas, pois estão cinco folhas impressas e quatro em provas,
talvez para lá e para cá.
Falei
ao Coronel Jacinto Dias Coelho a respeito do imposto e eu mesmo tenho que pagar
mas lá pelo dia 5 ou 6 por falta de ocasião, porque em caindo no serviço não
posso arredar o pé por falta de confiança nos superiores e nas inferiores – e
por isso, graças a Deus, tenho sido irrepreensível.
Mandem
dizer si precisão alguma cousa para levar no outro domingo.
Horácio
Carta
2:
Minas, 1º de Agosto de 1898.
Saúde e sossego é o que vos desejo
e a todos os vossos. A minha velha tem-me atormentado para que eu vos escreva a
miúdos e eu, para vingar-me dela procurarei fazer esta de modo que desagrade
imensamente às ouro-pretanas ai de vossa casa, embora ninguém as estime
mais do que eu.
A cidade de Minas, ninguém o pode negar,
é mesmo agora que quase tudo é mato-estrada - poeira-e vento, bonita e
magnificamente delineada. Faça o patrão ideia do quanto goza um pobre diabo
como eu que, tendo saído às 6 da manhã, ficando preso o dia inteiro até 5 da
tarde na sala de máquina, chegando em
casa mais morto do que vivo às 6 da tarde, não pode abrir uma vidraça de sua
casa para ver a bela noite que chega porque si o fizer – a vidraça será
invadida por compacta e harmoniosa nuvem
de pernilongos que entra para atormentar-lo a noite e dia inteiro!! Garanto que
em Ouro Preto não há destas belezas!... e distração para quem, como eu, não
pode passear.
Ai no Ouro Preto existem muitas
caixas d’água, porém, todas reunidas não são tão majestosas como a daqui. O
local onde ela está colocada é alto e tem uma vista esplêndida. Ontem domingo,
eu e Santinha lá fomos passear. Avista-se de lá perfeitamente a cidade de Santa
Luzia. O guarda da caixa d’água recebeu-nos com agrado, mostrou-nos tudo,
deu-nos bom café e informações de muitas cousas referentes às águas. Atualmente
a água única que abastece a cidade está reduzida à oitava parte por
causa da seca. Desde às 6 da tarde a maior parte da cidade fica sem água até
pela madrugada e as nossas maquinas já algumas vezes tem deixado de funcionar
por falta d’água no motor... Garanto que em Ouro Preto que é
coberta de tantas glórias e grandezas não tem destes acontecimentos que tanto
diverte a gente mandando os meninos com uma lata enfiada em um pau buscar água
longe para molhar o papel e eles gostam do passeio em charola!...
Segundo informarão - me – O Dr.
Francisco Júlio comprou um bonito e elegantíssimo prédio aqui no centro da
cidade. O local é muito bom porque fica
não longe do tribunal, muito próximo da imprensa, próximo do grande hotel, do
ponto de embarque e das igrejas além de ficar no meio do comercio e onde há
mais vida nesta cidade.
Aqui tudo é bonito e novo!...Em
diversas ruas, principalmente de meu lado e especialmente nas proximidades da
casa o Dr. Edmundo existem águas servidas correndo pelas ruas ou estagnadas que
ao sol quente aromatiza aquela vizinhanças insuportavelmente e se tornam
excelentes e úteis viveiros de nuvens de pernilongos. Ouro Preto é pobre
– nada tem de bom.
Saudosas lembranças de Santidade
para D. Lulu, Cicina, Dudu, Zininha, Luizinha e Milinha. Ai... e siá[sic]
Chiquinha também.
Horacio.
Infelizmente os documentos não
são reconhecidos como um patrimônio importante para o poder público. Dessa
forma, os cidadãos não conhecem o potencial dos arquivos para a disseminação de informações
de grande relevância para o cumprimento de seus direitos e deveres, bem como
de agentes preservadores da memória e da cultura.
É grande a fragilidade dos
acervos particulares a serem reconhecidos e tratados como parte constituinte da
nossa história. Isso por depender da conscientização dos indivíduos que detém esse
patrimônio documental e de uma política pública mais efetiva nesse sentido. Esse
processo de reconhecimento, recolhimento e tratamento desses acervos traz a garantia
de proteção assegurada a eles, já que promove a preservação e o acesso, mas
representa um grande desafio para os arquivos públicos. Sabemos que somos um
elo frágil da cadeia, em uma cidade extremamente rica em seu patrimônio
edificado tombado.
Referências:
Imagens: Fundo: José Pedro Xavier da Veiga. Arquivo Público Municipal de Ouro Preto.
Postagem e Revisão: Helenice Oliveira e Polyana Oliveira