quinta-feira, 28 de junho de 2018

Patrimônio Documental Público e os Acervos Familiares – Da doação à Difusão e os desafios da conservação.



Nossa segunda postagem referente ao ano do Patrimônio Cultural – cujos objetivos do blog é não apenas tratar este ano como meramente comemorativo, mas também como momento importante para reflexões dos pontos sensíveis destes patrimônios,

O objetivo primeiro de um Arquivo Público Municipal é tratar da documentação oriunda do poder público Municipal, com objetivo de salvaguardá-la e colocá-la a disposição do cidadão, para assegurar a este seus direitos a cidadania, a informação, pesquisa e preservação da memória de seu espaço e sua cultura. Para além do trato puramente probatório, o arquivo também trabalha com a memória e com historia do município, e nesse sentido, ter a oportunidade de anexar a seu conjunto acervos de natureza particular, mas com valor social, enriquece substancialmente a Instituição.

Em muitos casos, esse patrimônio se encontra acumulado dentro das casas dos moradores, que, talvez por desinformação privam a cidade de importantes páginas de sua história, que podem ser contatadas através de fotografias, manuscritos, documentos iconográficos, podendo ser perdidos por este desconhecimento.
O recolhimento ou recebimento de doações de acervos familiares ainda são bem raros em Ouro Preto. Há alguns anos, o Arquivo Público Municipal de Ouro Preto recebeu, por doação, um importante acervo pessoal pertencente à Família Xavier da Veiga. Recebemos também o acervo Tonico Zelador. Em 2017 foi a vez da coleção de jornais da cidade do século XX, e em 2018 recebemos acervo digital do Senhor Agenor Alves, composto por seus cadernos escolares das décadas de 1930-1940.
 
Abaixo escolhemos duas cartas do fundo privado do Xavier da Veiga endereçadas ao “Bom Patrão” (José Pedro) por seu empregado Horácio. Numa primeira análise, podemos perceber de alguma maneira, como Horácio é impactado pelas mudanças em seu modo de vida, quando da mudança da capital de Ouro Preto para a cidade de Minas, mais tarde denominada Belo Horizonte. Esse documento foi redigido no momento de transição entre as tradições do passado e a modernidade, que se apresentava na nova capital. Estes documentos descrevem um pouco do cotidiano deste homem em um novo lugar.

Cartas para Xavier _ Um homem de arquivos e  memórias; 


Carta 1:

 

Minas, Sábado, 11 de outubro de 1896 5 horas da tarde.
            Recebi hoje, já no serviço a vossa cartinha de 15 que muito me contentou por saber que tudo ai vai regularmente.
            Respondendo-a, dou-vos a boa notícia que não irei amanhã, pois a minha velha não quer que eu deixe São Sebastião e São Roque sem a minha continência amanhã em sua procissão. E é como penso só temendo doença sobre a terra, devo prestar homenagem ao santo que dela nos livra embora mais cara me fique a não ida.
            Como vereis pela data desta, hoje é sábado e Toninha já levou as flores de Estela. É o dia de sua alegria este de hoje. Quando leva flores ao cemitério passa bem e acha tudo bom. Deus lhe dê saúde para assim fazer por muitos anos. Nós queremos bem, ao patrão é por causa das meninas. A vida delas é a nossa e não sabemos porque!!...Parece que agente vive da vida dos outros.
            Falo, zango, e mostro valentia!...Sai o patrão com a família (e mesmo sem ela!!) tudo está mudado – nos falta alguma cousa, ficamos no ar – tudo que nos rodeia é falso. Ficamos sozinhos – entretanto tudo vai bem, nada nos falta – mas parece que nos falta tudo. Será isso a saudade?... Dessa maneira, creio... Não irei a São Gonçalo nunca e o Belo Horizonte é duvidoso.
            Mandei hoje, às 11hs do dia, pelo Ricardo Café, as 10$000 ou Dr. Jacob.
            Anteontem vos remeti 4 folhas impressas da Revista e ontem imprimi mais uma, que não mandei por ser pouco. Creio que o nosso chefe vos tem mandado provas, pois estão cinco folhas impressas e quatro em provas, talvez para lá e para cá.
            Falei ao Coronel Jacinto Dias Coelho a respeito do imposto e eu mesmo tenho que pagar mas lá pelo dia 5 ou 6 por falta de ocasião, porque em caindo no serviço não posso arredar o pé por falta de confiança nos superiores e nas inferiores – e por isso, graças a Deus, tenho sido irrepreensível.
            Mandem dizer si precisão alguma cousa para levar no outro domingo.

Horácio

  Carta 2:






 Minas, 1º de Agosto de 1898.
Saúde e sossego é o que vos desejo e a todos os vossos. A minha velha tem-me atormentado para que eu vos escreva a miúdos e eu, para vingar-me dela procurarei fazer esta de modo que desagrade imensamente às ouro-pretanas ai de vossa casa, embora ninguém as estime mais do que eu.
A cidade de Minas, ninguém o pode negar, é mesmo agora que quase tudo é mato-estrada - poeira-e vento, bonita e magnificamente delineada. Faça o patrão ideia do quanto goza um pobre diabo como eu que, tendo saído às 6 da manhã, ficando preso o dia inteiro até 5 da tarde na sala de máquina, chegando  em casa mais morto do que vivo às 6 da tarde, não pode abrir uma vidraça de sua casa para ver a bela noite que chega porque si o fizer – a vidraça será invadida por compacta  e harmoniosa nuvem de pernilongos que entra para atormentar-lo a noite e dia inteiro!! Garanto que em Ouro Preto não há destas belezas!... e distração para quem, como eu, não pode passear.
Ai no Ouro Preto existem muitas caixas d’água, porém, todas reunidas não são tão majestosas como a daqui. O local onde ela está colocada é alto e tem uma vista esplêndida. Ontem domingo, eu e Santinha lá fomos passear. Avista-se de lá perfeitamente a cidade de Santa Luzia. O guarda da caixa d’água recebeu-nos com agrado, mostrou-nos tudo, deu-nos bom café e informações de muitas cousas referentes às águas. Atualmente a água única que abastece a cidade está reduzida à oitava parte por causa da seca. Desde às 6 da tarde a maior parte da cidade fica sem água até pela madrugada e as nossas maquinas já algumas vezes tem deixado de funcionar por falta d’água no motor... Garanto que em Ouro Preto que é coberta de tantas glórias e grandezas não tem destes acontecimentos que tanto diverte a gente mandando os meninos com uma lata enfiada em um pau buscar água longe para molhar o papel e eles gostam do passeio em charola!...
Segundo informarão - me – O Dr. Francisco Júlio comprou um bonito e elegantíssimo prédio aqui no centro da cidade.  O local é muito bom porque fica não longe do tribunal, muito próximo da imprensa, próximo do grande hotel, do ponto de embarque e das igrejas além de ficar no meio do comercio e onde há mais vida nesta cidade.
Aqui tudo é bonito e novo!...Em diversas ruas, principalmente de meu lado e especialmente nas proximidades da casa o Dr. Edmundo existem águas servidas correndo pelas ruas ou estagnadas que ao sol quente aromatiza aquela vizinhanças insuportavelmente e se tornam excelentes e úteis viveiros de nuvens de pernilongos. Ouro Preto é pobre – nada tem de bom.
Saudosas lembranças de Santidade para D. Lulu, Cicina, Dudu, Zininha, Luizinha e Milinha. Ai... e siá[sic] Chiquinha também.

Horacio.


Infelizmente os documentos não são reconhecidos como um patrimônio importante para o poder público. Dessa forma, os cidadãos não conhecem o potencial dos arquivos para a disseminação de informações de grande relevância para o cumprimento de seus direitos e deveres, bem como  de agentes preservadores da memória e da cultura.

É grande a fragilidade dos acervos particulares a serem reconhecidos e tratados como parte constituinte da nossa história. Isso por depender da conscientização dos indivíduos que detém esse patrimônio documental e de uma política pública mais efetiva nesse sentido. Esse processo de reconhecimento, recolhimento e tratamento desses acervos traz a garantia de proteção assegurada a eles, já que promove a preservação e o acesso, mas representa um grande desafio para os arquivos públicos. Sabemos que somos um elo frágil da cadeia, em uma cidade extremamente rica em seu patrimônio edificado tombado. 


 
  Referências:
 
Imagens:  Fundo: José Pedro Xavier da Veiga. Arquivo Público Municipal de Ouro Preto.  
Postagem e Revisão: Helenice Oliveira e Polyana Oliveira